Li há pouco tempo um livro que adorei. Retrata a visita de uma turista inglesa, com o seu marido, à Madeira, em 1853.
José Henrique de França, o marido, de 51 anos, tinha nascido em Convent Garden, Londres e era descendente de um emigrante madeirense.
Isabella de França, a escritora, de 58 anos, vinha à Madeira conhecer a terra do sogro, numa lua-de-mel e de aventuras que partilha na escrita e aguarelas.
A estadia na Madeira durou cerca de 1 ano e a viagem, de barco, o ‘Eclipse’, partiu de Londres e demorou cerca de 15 dias.
Ficaram hospedados num hotel na Rua da Carreira, na altura uma das principais ruas do Funchal. Este era gerido por Jacinto de Freitas e situava-se em frente à Igreja Inglesa.
O diário fala de passeios nos seguintes locais:
Quinta do Palheiro Ferreiro
Quinta Calaça (Clube Naval do Funchal)
Igreja Inglesa
Quinta do Monte
Quinta da Achada, na Camacha
Caniço
Quinta da Varanda no Estreito da Calheta (que pertencia à sua família)
Prazeres
Curral das Freiras
Câmara de Lobos
Machico
Ribeira Brava
Santo da Serra.
Fala também da descoberta da Levada do Risco, e decreve-a assim:
(Nota: O livro que li estava em Inglês e fiz deste modo a tradução.)
“Eu olhei para cima, e senti-me como nunca me poderei voltar a sentir. Uma rocha, alta, alta e côncava semicircular, de um verde mais verde do que qualquer um dos demais; fetos e musgos, e grinaldas penduradas, brilhantes cálices de musgo, plantas com flores brancas, fungos cor de laranja (pelo menos pareceram-me fungos) e sobre esta tapeçaria requintada de folhas e musgo, mais de cem jatos espumantes de prata líquida, correndo desde o topo da rocha, e caindo para o lago, rio abaixo. A rocha é tão alta que na borda da mesma, ao olharmos para cima, esta senta-se contra o céu azul claro como se nele descansasse; enquanto a quietude perfeita de tudo ao redor, exceto a própria cascata, se combina para produzir uma sensação de intensa admiração – Eu deveria antes chamar-lhe, Uau!”
O livro descreve caminhadas no centro da cidade, passando pela Igreja do Colégio, Igreja de São Pedro, Convento de Santa Clara, Neves e Lazareto.
Descreve trajes tradicionais, costumes e particularidades dos madeirenses.
Uma destas particularidades era a propensão extraordinária para arranjar alcunhas:
Manuel Rodrigues, o frade;
Manuel, o mata-patos;
o Sr. Patife,
o Sr. Macaco,
duas irmãs que davam pelo nome de Princesas pretas e outras duas por Princesas brancas, por serem mais bonitas, etc…
Estas alcunhas passavam de geração em geração havendo inclusive a família dos “Bacalhaus”.
Era também frequente usarem o nome das ruas onde viviam ex:
Diogo da Calçada, D. Ana das Cruzes etc…
Conta que havia uma família de Mudos na Calheta, que tinha o melhor bailarino de Valsa da Ilha – o Morgado Mudo, cujo verdadeiro nome era Cabral.
Penso que será desta família, que vem o nome da ‘Casa das Mudas’.
Os passeios no Funchal faziam-se num carro de bóis, de barco (quando foram à Calheta), de carros de cestos (na descida do Monte) e de rede ( que carregava “gentes de respeito”) por diferentes partes da ilha, inclusive ao longo das levadas!
Descreve também as expressões que os madeirenses usavam para incentivar os bois a andar, nomeadamente “anda cá boi, anda bonito”.
Como curiosidade refere que as lojas do Funchal eram sobretudo na zona baixa da cidade e algumas tinham escrito na porta P.V.B. que significava “Pão e vinho bom”.
Interessante, é também, o ritual de cumprimentos, que Isabella tão bem descreve.
Ao que parece, não havia campainhas e normalmente gritavam à porta:
“A srª está em casa?”
A resposta era:
“Está sim sr.”
ou
“Avé Maria Puríssima.” – ao que o outro respondia:
“Sem pecado concebida.”
Os cumprimentos das pessoas mais pobres perante estas “Gentes de respeito” eram:
“A sua bênção”- enquanto se agachavam aos pés.
“Deus te abençoe” – resposta dada enquanto desenhavam a cruz na testa.
Uma das coisas que mais gostei neste livro são as descrições referentes à beleza da Ilha. Descreve lindamente as cores das montanhas reflectidas pelo sol, a beleza e variedade de flores, os passeios pelos montes e levadas, as cores do céu, do mar e do por do sol “de uma beleza nunca antes vista”.
Relata, no entanto, ter ficado um pouco chocada com a falta de higiene e pobreza de algumas famílias e a forma como os animais eram maltratados.
Em conclusão, despede-se assim:
“Olho com carinho para a minha estadia nesta bela Ilha, esta terra de sol e de flores, de hospitalidade gentil, calorosa, uma terra de montanhas, rochas, arcos íris, pinheiros, bosques e todas as coisas brilhantes e bonitas, iluminadas por um sol que eu acredito nunca brilhar igual noutro lugar e cercada por um mar glorioso em toda a sua magnificência.
Não haverá tempo que apague ou reduza as minhas memórias felizes da minha estadia na Bela Madeira.”
Incrível que este diário tenha permanecido incógnito durante quase 100 anos!
Foi encontrado por acaso, pelo colecionador e advogado madeirense Dr. Frederico de Freitas, num alfarrabista em Londres, com 342 páginas, escrito à mão e acompanhado por aguarelas. Estava pronto a ser impresso e envolto num papel que dizia:
“Journal of a visit to Madeira and Portugal, with 24/25 (one double page) drawings to illustrate it. Unique item.”
Através de uma pesquisa morosa feita pelo Sr. João M. dos Santos Simões, permitiu-se comprovar a veracidade dos factos relatados neste livro, adicionando notas, comentários e referências à mesma.
Este livro acabou então por ser publicado em 1969, em Inglês com tradução para Português, pelo Dr. João Cabral do Nascimento e com o apoio do Presidente da Junta do Distrito Autónomo do Funchal, como forma de enriquecimento do Património Cultural da Região.
Foi graças ao Dr. Frederico de Freitas e ao seu sentido do que é belo e valioso que temos hoje na Madeira, um valioso legado de peças de arte.
Se puderem façam uma visita à Casa Museu Frederico de Freitas, a antiga casa da Calçada, onde irão encontrar uma belíssimo espólio da colecção deste amante das artes; Escultura, Azulejos, Pintura, Gravura, Mobiliário, Cerâmica, Vidros e Metais.
A casa é lindíssima, e podemos ver o quarto de dormir, a casa de jantar, o jardim interior e exterior com uma casinha de prazeres com vista para a Igreja de São Pedro, as salas de estar e de jogos, a cozinha e a biblioteca, com todo o seu rico interior.
Encontrarão também à venda um livro com cópias das aquarelas, belíssimas, da Isabella de França.
Pessoalmente, gostei de sentir que há coisas que não passam de moda, como contar histórias das viagens que fazemos. Isabella, uma “blogger” de outros tempos?!.
Um muito obrigada aos meus pais por me terem oferecido este livro.
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