Os meus filhos estão a chegar aquela idade em que a pergunta que mais lhes fazem é:
– O que é que queres ser quando fores grande?
É incrível, a quantidade de pessoas que dizem:
– Não queres ser médico?
Na minha última viagem a Dublin, conheci um sr que me contava que a filha era maquilhadora de cinema. Desenhava cicatrizes, sangue e nódoas negras mas também fazia as pessoas ficarem mais bonitas. Andava sempre nos bastidores do teatro e como extra tinha que suportar as crises existenciais das actrizes, que achavam não estar bonitas que baste.
Dizia isto com um orgulho extremo, acompanhado pela frase:
– Ela é feliz assim; é o que ela sempre quis ser!
Quando lhe perguntei, como é que esta ‘paixão’ surgiu, respondeu-me que ela andou numa escola ‘alternativa’ onde os alunos não eram avaliados em números, mas em aptidões. Por exemplo, recebiam um diploma por ter ajudado tal colega naquela semana, por ter criado um desenho bonito, por ter aprendido a tocar um instrumento, por ter consolado um colega que estava a chorar. Dizia-me também que tinham muitas actividades ao ar livre, andavam pela cidade, iam ao teatro, aos museus, tinham aulas de arte, pintura, escultura, frequentavam bibliotecas pelos livros que queriam ler, praticavam voluntariado em instituições, nas férias grandes etc. Disse-me também a seguinte frase:
-Sabe, estou convencido que as profissões é que nos escolhem, não o contrário.
Achei interessante este conceito de avaliação. Não em números mas em aptidões. Fiquei a pensar que assim deveriam ser as escolhas de profissões; não em notas mas em predisposição.
Note-se que o curso de Medicina, pelo menos nas Universidades Públicas é apenas acessível a quem tem melhores notas e esta avaliação baseia-se apenas nas aptidões intelectuais, essenciais ao exercício da profissão, mas não suficientes, na minha opinião.
O grande desafio da escolha de uma profissão, é ter orgulho naquilo que se faz e ser reforçado positivamente por isso.
Seja a servir cafés e aquecer o dia de alguém, seja a fazer arte que enaltece a alma, seja a salvar vidas.
Se quiserem que os vossos filhos sejam bons médicos, lembrem-se que esta é uma escolha deles, não vossa.
Ensinem-nos a ser altruístas; a pensar primeiro nos outros e depois neles. Tenham consciência do que ser médico envolve: a gostar de dar incondicionalmente, porque é disto que se trata, no fundo.
Ensinem-lhes também a ficar noites sem dormir, a perder festas de Natal e aniversários em família, a não ter fins de semana, a ficar sem feriados ou férias de verão, a não ver os filhos o dia todo, a lidar com sentimentos de dor, de perda, de sofrimento, de profunda tristeza, a aceitar a inexatidão da ciência, que nem tudo é como nos livros e que há coisas que acontecem que não se conseguem prever.
Treinem-nos a lidar com sentimentos de culpa e insegurança. Depois digam-lhe também que vão ter que estudar muito e durante a vida toda, terão que gostar de estudar. Terão também que saber muita psicologia humana, lidar com pessoas, isso mesmo.
Avisem-nos que por vezes não serão reconhecidos pelo que fazem, que os patrões podem pagar-lhes menos, se for preciso, que os doentes ( e os colegas) podem ficar revoltados e virar-lhes as costas, que há dias em que lhes vai apetecer chorar, desesperar e fugir.
Mostrem-lhes também que há dias que compensam tudo o resto e que os farão sentir no céu.
Ensinem-nos a dar quem não tem, eles vão perceber o conceito.
Salvar a vida a alguém não tem preço.
Tirar a dor, curar a ferida, fazer o penso são atos de amor, não de pressa.
Ser médico é uma profissão de valor incalculável, quando bem exercida.
Para que isto aconteça é necessário dar condições humanas e dignas aos doentes mas também aos médicos, enfermeiros e técnicos, assim como a todos os que estão relacionados com esta profissão, direta ou indiretamente. Condições das quais se orgulhem e nas quais se sintam motivados a continuar.
É também necessário que os jovens que escolhem esta profissão, saibam onde se estão a meter e que tenham verdadeira aptidão para querer fazer a diferença, na vida de alguém. Esqueçam os números.
Não é tarefa fácil, mas se não o fizermos urgentemente, corrermos o risco de perder os que nos podem salvar, um dia, a vida.
P.S. – Recomendo a leitura deste artigo, confissões de uma médica: http://cafecanelachocolate.sapo.pt/confissoes-de-uma-medica-6-244951